Todo o conflito que envolve a decisão do juiz Waldemar Cláudio de
Carvalho, da 14ª. Vara do Distrito Federal, que autorizou os tratamentos
alternativos – pseudoterapias de reversão sexual – para pessoas que se sentem
desconfortáveis quanto à sua orientação ou organização da vida sexual, está
diretamente ligado ao infindável debate entre a ciência e a religião.
De fato, ao avaliar as falas de ambos os lados – os que defendem e os
que acusam a referida decisão – deparo-me, inevitavelmente, com os
posicionamentos efetivos de quem adota um princípio ou outro, ou seja: ciência
e religião. Neste sucinto texto, manifesto-me com certa autoridade sobre o
assunto em pauta atual, pois sou teólogo e acadêmico de psicologia. Sei de onde
falo e sei também os limites de minha fala.
Para mim, de forma particular, ciência e religião são duas esferas de
linguagens que até podem dialogar entre si, mas não podem se confundir uma na
outra. Por isso é de estranhar a ação de um(a) psicólogo(a), que efetua suas práticas
na esfera científica, utilizar meios religiosos em terapias. Psicologia não tem
a ver com a religião, mas com a ciência, em suma.
Por esse motivo incipiente, considero que a decisão do referido juiz não
foi coerente e tampouco salutar. Foi, no mínimo, esdrúxula.
Todavia, o que agora chegou a público não foi decisão aleatória. O juiz
não acordou do nada, sob o sol da manhã, e decidiu sobre isso. Ele deliberou
sobre uma ação judicial promulgada pela psicóloga e missionária Rozangela Alves
Justino, que teve seu registro cassado pelo Conselho Federal de Psicologia, em
2009. A cassação se deu porque a psicóloga oferecia práticas pseudoterapêuticas
que prometiam a cura da homossexualidade, tanto masculina como feminina. Na
ação movida, a referida psicóloga, que também é evangélica, pleiteava a
suspensão dessa regra e a retratação do CRP.
Em 2009, quando teve seu registro cassado, Rozangela chegou a dizer que
as pessoas que têm atração pelo mesmo sexo agem assim "porque foram
abusadas na infância e na adolescência e sentiram prazer nisso". Admitiu a
sua experiência religiosa e afirmou que Deus a usa para ajudar pessoas que são
homossexuais.
Foi em 2007, que uma
ONG de defesa dos direitos de homossexuais, sediada em Nova Iguaçu, entrou com
uma representação no CRP do Rio de Janeiro pedindo a cassação do registro
profissional da psicóloga. O conselho decidiu por uma censura pública. A
psicóloga recorreu, então, ao Conselho Federal de Psicologia, que
manteve a punição. Todavia, em 31 de julho de 2009, o CFP decidiu aplicar
uma censura pública como punição à psicóloga Rozangela Alves Justino.
Segundo essa autarquia: “Ela infringiu o Código de Ética da Psicologia e uma
resolução do conselho, de 1999, segundo a qual a “homossexualidade não
constitui doença, nem distúrbio e nem perversão”. A censura foi divulgada
nos órgãos de comunicação e no Diário Oficial da União.
Visto que a psicóloga
perdeu suas possibilidades de recursos administrativos, resolveu recorrer na
justiça.
Em que pese o fato de
que a psicóloga e missionária julgar sua ação coerente, considerando a
homossexualidade como um distúrbio, seus princípios revelam, tão somente, um
posicionamento pessoal coligado á lógica da religião. É bom lembrar que Rozangela trabalha desde 2016 no
gabinete do deputado federal Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ), que por sua vez é
apadrinhado pelo Malafaia. Obviamente, e essa é uma opinião unilateral, sua
vinculação religiosa, que ao que parece foi inicialmente de vertente
presbiteriana, ganhou outros contornos em seu convívio com a bancada
evangélica.
Se as associações livres
e as ONG’s que defendem a causa LGBT comemoraram aquela decisão de 2009, hoje a
sombra que se projetou sobre o cenário brasileiro foi bem acinzentada. Não
foram poucos os que, em protesto, acusaram o magistrado de ser homofóbico. Ora,
Carvalho não chegou a defender explicitamente a cura gay e nem
derrubou a resolução do CFP, entretanto, foi contraditório ao determinar que o conselho
altere a interpretação de suas normas de forma a não impedir os profissionais
"de promoverem estudos ou atendimento profissional, de forma reservada,
pertinente à (re)orientação sexual, garantindo-lhes, assim, a plena liberdade
científica acerca da matéria, sem qualquer censura ou necessidade de licença
prévia".
Entretanto, na Resolução 001/99 do CFP, está assim registrado: "os
psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de
comportamentos ou práticas homoeróticas, nem adotarão ação coercitiva tendente
a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados". Ademais, a
mesma resolução requer que os profissionais de psicologia contribuam "para
uma reflexão sobre o preconceito e o desaparecimento de discriminações e
estigmatizações contra aqueles que apresentam comportamentos ou práticas
homoeróticas".
Diante da decisão judicial, o CFP expressou que vai recorrer da decisão
e argumenta que "o que está em jogo é o enfraquecimento da Resolução 001/99
pela disputa de sua interpretação, já que até agora outras tentativas de sustar
a norma, inclusive por meio de lei federal, não obtiveram sucesso". Ademais,
o órgão ainda expressa: "O judiciário se equivoca ao desconsiderar a
diretriz ética que embasa a resolução, que é reconhecer como legítimas as
orientações sexuais não heteronormativas, sem as criminalizar ou
patologizar".
Ora, o parecer do CFP visa estabelecer o limite das práticas terapêuticas,
restringindo-as, tão somente, ao campo da ciência e não da religião. Se alguém
precisa de religião, pode procurar uma igreja, um centro espírita, um terreiro
ou qualquer outro tipo de espaço alternativo. Todavia, no terreno da ciência,
como é o caso da psicologia, a conversa tem que se organizar em outro nível. A
portinhola que se abriu com a decisão judicial pode dar margem à aplicação de
uma série de técnicas duvidosas que nada tem a ver com a psicologia.
Talvez, alguns poderão argüir que este é um problema simples de ser resolvido,
mas não é. Tratar a homossexualidade como doença ou como distúrbio é
desrespeitar a pessoa humana em sua integridade. Aliás, se pensarmos bem, os
conflitos decorrentes de um(a) homossexual são conflitos exógenos, ao invés de
endógenos. Interiormente, a pessoa é bem resolvida com a sua sexualidade, mas
para garantir aceitação em determinado nicho familiar ou social, acaba
vivenciando os conflitos.
A Organização Mundial de Saúde – OMS, deixou de classificar a
homossexualidade como doença em 1973. Em 1990, retirou a homossexualidade do
quadro de doenças mentais, declarando que: “A homossexualidade não constitui
doença, nem distúrbio e nem perversão”. Na mesma linha, seis anos antes, a
Associação Brasileira de Psiquiatria aprovou a seguinte resolução: “Considerando
que a homossexualidade não implica prejuízo do raciocínio, estabilidade e
confiabilidade ou aptidões sociais e vocacionais, opõem-se a toda discriminação
e preconceito contra os homossexuais de ambos os sexos”.
Portanto, é cruel para
qualquer pessoa julgar que a homossexualidade seja uma doença. Ela precisa ser
encarada como uma expressão do amor de um corpo para outro corpo. Jamais como
perversão.
A ciência ainda não possui
uma posição conclusiva sobre os mistérios da homossexualidade. Os fatores podem
ser hormonais, genéticos, congênitos ou resultados de vivências traumáticas
durante a infância. Como se percebe, há um espectro de ampla complexidade que
precisa de muita atenção, respeito e cuidado. Aliás, Sigmund Freud, o pai da
psicanálise, expressou certa feita: “Se vamos nos indagar sobre as causas da
homossexualidade, é igualmente pertinente nos indagarmos sobre quais são as
causas da heterossexualidade”. O que quer dizer que o interesse de um homem
para com uma mulher e vice-versa, precisa de esclarecimentos também. No fundo,
é muita pretensão querer mudar o outro, se não damos contas de mudar a nós
mesmos.
Enquanto escrevia este
texto, me chegou o relato de um amigo, o Thales Vilela, que vivenciou uma
experiência traumática, quando submetido a essas pseudoterapias. Transcrevo seu
relato, que muito evidencia meu ponto de vista:
“Pra
quem ainda não entendeu os efeitos da decisão judicial que autoriza a ‘cura gay’,
tá aí: Quando eu era mais novo, por volta dos meus 16/17 anos, eu me entendi
como homossexual e, voluntariamente, procurei ajuda para a reorientaração da
minha sexualidade (“cura gay”), pois eu queria muito me tornar heterossexual. Como
eu fui criado em um lar cristão evangélico, eu e meus pais buscamos ajuda
dentro da Igreja que frequentavamos, onde conseguiram uma psicóloga cristã
disposta a me ajudar.
Fiz
terapia por anos. As consultas ocorriam no interior de igrejas dentro e fora de
BH, as vezes com mais de um profissional ao mesmo tempo, e podiam durar por
horas, sempre semanalmente ou quinzenalmente.
Eu
era orientado a vigiar constantemente meu comportamento, pensamento, e devia
anotar minhas lutas e vitorias todos os dias em um diário que tenho até hoje.
Me disseram que orações e jejuns eram essenciais para o meu fortalecimento
espiritual, e que isso eventualmente traria a cura da minha condição pecaminosa,
o que dependia do meu esforço e da vontade divina.
Sempre
que eu falhava na minha vigilância um intenso sentimento de culpa tomava conta
de mim, e as lágrimas eram frequentes e inevitáveis, sendo o meu único refúgio
a promessa de que aquilo iria acabar um dia quando eu ficasse curado.
Após
um bom tempo de terapia percebi que alguma coisa não estava certa, que apesar
do meu esforço eu não estava melhorando da minha doença, e que eu estava
reprimindo algo que parecia ser natural, me deixando muito infeliz.
Percebi
que mesmo se eu conseguisse me tornar hetero, eu não seria feliz daquele jeito,
e foi a partir desse ponto que eu comecei a pensar: Será que a minha condição
de homossexual é tão ruim quanto viver essa vida de sacrifício e repressão para
sempre?
Me
dei conta de como aquele processo de terapia intensa estava me traumatizando
além do que eu podia suportar, e assim decidi parar com a terapia e me aceitar,
o que foi bem difícil e doloroso.
Hoje
eu superei muitos dos meus traumas, alguns persistem e ainda trazem
consequências, mas sei de muitas pessoas que passaram pelo mesmo processo que
eu e sofrem bastante com isso.
Foi
na tentativa de reduzir histórias como a minha que desde 1999 o Conselho
Federal de Psicologia (CRP), por meio da Resolução 001/1999, proibiu o estudo e
a prática da terapia no sentido da reorientação homossexual. Tal decisão tomou
diversos estudos como base, desde aqueles que apontam a origem genética da
homoafetividade, até aqueles que demonstram a ineficácia quase absoluta de
terapias nesse sentido, o que demonstra a ausência de benefícios diante de tal
tratamento.
Porém,
uma recente decisão da 14ª Vara do Distrito Federal suspendeu os efeitos da
referida Resolução do CRP, na qual o magistrado afirma que a Resolução limita a
liberdade científica brasileira ao impedir o estudo de tal forma de terapia.
Tal
decisão é extremamente preocupante, pois vai contra a maioria dos estudos sobre
o tema e contra decisão fundamentada do CRP, órgão especializado e competente
para decidir sobre a relevância ou não de estudo e aplicação de determinadas
formas de terapia.
Não
há nenhum ponto positivo na referida decisão, há apenas um triste retrocesso
histórico, que se volta à patologização da homoafetividade. Faça um exercício
de empatia aí, e tenta entender o nosso lado. Não é necessário tratamento para
aquilo que não precisa ser tratado”.
O relato de Thales
evidencia a complexidade em se tratar a questão da homossexualidade. Em
qualquer situação, é preciso bom senso e atitudes de respeito e
responsabilidade. Decisões unilaterais da justiça não resolvem o pleito.
Fundamental mesmo é tratar cada situação com o mínimo de responsabilidade.
Enfim, espero que este
texto contribua para a melhor responsabilização de toda a sociedade para com as
pessoas, independente de suas escolhas pessoais. Afinal de contas, quem pode se
livrar de um juízo efetivo, diante de um auto-exame? Pessoa alguma tem o
direito de julgar a outra por causa de suas vivências. Para mim, em especial,
pessoas religiosas precisam se ater ao religioso. Esferas científicas precisam
ser preservadas como tais. Como teólogo, não desprezo o religioso, mas não
compreendo a utilização da simbologia religiosa para resolver questões que
precisam de tempo para serem entendidas ou compreendidas. Se preciso de um
conserto para o meu carro, não vou a um determinado movimento religioso.
Procuro um mecânico. Por esse motivo, a decisão judicial provoca agonia em quem
a recebe e dá margem a múltiplas aventuras religiosas, em sua grande maioria, sem
sentido. Portanto, sejamos sensatos. Cada coisa em seu lugar, pois como diria o
grande filósofo Tim Maia: “Uma coisa é um coisa, e outra coisa é outra coisa”!
Um comentário:
Obrigada querido amigo! Sua lucidez sempre presente se faz pertinente mais uma vez. Obrigada pelo respeito ao diferente e pela constante preocupação em compreender o coração dos outros. Um abraço apertado e muita admiração por ti!
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